Os padrões de beleza sob nova perspectiva

Um dos assuntos mais comentados hoje em dia são os “padrões de beleza” e seus impactos negativos na sociedade contemporânea. O ponto central da maioria das críticas são as consequências psicológicas da imposição de um certo “padrão”. Mas será mesmo que o assunto é debatido à luz da razão?

Para discutirmos os padrões de beleza, precisamos primeiro desconsiderar nossas impressões subjetivas sobre o assunto, ou seja, buscar o que é factível e analisa-lo friamente, e depois distinguir o que é propriamente biológico, e por isso instintivo, do que é socialmente construído, e por isso planejado conscientemente por alguém. Essa tarefa, porém, não é fácil. Cada contexto cultural possui suas particularidades e, a depender do referencial lógico adotado, pode haver uma confusão entre fatores biológicos e fatores sociais. Com isso em mente, me focarei neste artigo apenas no que é claramente distinguível, sem, com isso, tentar esgotar o tema, dada a complexidade deste. O objetivo é dissertar sobre o assunto saindo um pouco do que é comumente disseminado na mídia.

Talvez seja mais fácil começarmos caracterizando os padrões de beleza biológicos, pela própria natureza universal deles.

Na evolução, praticamente quase tudo tem seu “porquê”. Gostamos de comer carne vermelha, por exemplo, porque elas são extremamente nutritivas. Esse grande teor calórico provavelmente possibilitou que muitos de nossos ancestrais vivessem o bastante para garantir a sobrevivência da espécie e que, nos tempos de hoje, em que há uma grande disponibilidade de comida, muitas pessoas ficassem obesas. Dessa maneira, podemos concluir que nossa vontade insaciável de comer aquela picanha no churrasco nada mais é que um mecanismo evolutivo para garantir a sobrevivência da espécie, o qual não evoluiu tão rápido quanto a nossa capacidade de produzir comida em massa.

Algo similar acontece também na reprodução humana. Da mesma forma que animais selvagens procuram o melhor parceiro sexual para acasalar, o ser humano instintivamente procura a melhor opção para dar prosseguimento à espécie. Assim, do ponto de vista meramente reprodutivo, é muito mais vantajoso para um homem acasalar-se com uma mulher “atraente”, de feições robustas, do que com uma mulher magra e fraca, que talvez não aguente o parto ou não consiga amamentar adequadamente o seu filho. E essa mesma lógica também se aplica às mulheres. É muito mais vantajoso para uma mulher ter ao seu lado um homem másculo e viril do que um homem franzino, fisicamente incapaz de manter sua prole em segurança. Portanto, constatamos que os padrões de beleza biológicos são atributos corporais vantajosos para a sobrevivência da espécie que todos nós instintivamente buscamos no sexo oposto. Em outras palavras, eles funcionam como um mecanismo evolutivo de seleção do melhor parceiro reprodutivo e, em razão disso, são cobiçados [1] pela sociedade — buscar um parceiro reprodutivo saudável é um comportamento tão (ou mais) estimulado por nosso cérebro quanto comer aquela carne vermelha rica em proteína e gordura.

Tendo isso em mente, reduzir o apreço humano pelos padrões de beleza biológicos a uma conduta meramente negativa seria ir contra nossas próprias características inatas, ou seja, contra nossa própria natureza. Por outro lado, repensar nosso apreço por tais padrões não significa só ver o lado positivo ou mesmo justificar assédio e abuso sexuais; significa, antes, entende-los como aspectos indiferentes da composição humana [2], isto é, não são eles, em si, que prejudicam a sociedade, mas é a nossa postura diante deles que pode gerar sofrimento. Não faz sentido culpar um cachorrinho por sujar o tapete da sala, pois ele não tem noção disso, sua natureza é indiferente às nossas preocupações e aos nossos caprichos, e o mesmo se aplica aos padrões de beleza estritamente biológicos. Não faz sentido acusa-los de serem a fonte do problema, já que eles são apenas parte do que nós somos, da nossa natureza.

Esse raciocínio muda, entretanto, quando passamos a analisar os padrões de beleza socialmente construídos, geralmente bem específicos e fomentados por um determinado setor da sociedade, que muito provavelmente tem interesses econômicos envolvidos na adoção de alguma preferência estética. Esses padrões de beleza são amplamente conhecidos e representam o que está em voga no momento, fazendo com que haja uma pressão social implícita para que eles sejam adotados, principalmente pelas mulheres. Nesse caso, o problema não está propriamente em promover este ou aquele padrão estético artificial, mas no efeito que essa promoção terá em seu público alvopessoas esteticamente distantes do padrão passam a serem consideradas feias ou indesejáveis, e não é nem preciso ir muito longe para perceber o quão nocivo isso é. Por vezes, os padrões de beleza sociais impõem-se como um fardo nas costas das pessoas, fazendo com que muitas delas se sintam péssimas com suas aparências e fiquem com vergonha de si mesmas. Quando essa vergonha do próprio corpo se torna insuportável, o suicídio infelizmente se apresenta a essas pessoas como a única forma de aliviar a dor.  

Contudo, a solução do problema passa, inevitavelmente, não pelos padrões, mas pela postura das pessoas influenciadas por eles, haja vista que aqueles sempre existiram e existirão. Somos nós que, de baixo para cima [3], individualmente, devemos ter bom senso e respeitar nossos limites. A pressão social e os olhares de desaprovação são parte da idiossincrasia humana; praticamente tudo que alguém fizer ou deixar de fazer será alvo de críticas — ser você mesmo tem seu preço.

Em suma, libertar-se de quaisquer padrões estimados não é fácil, mas, se prejudicial, é necessário. “Se prejudicial” porque é relativo, varia de pessoa para pessoa. Enquanto uma mulher pode achar abusivo ter que sempre estar de sobrancelha feita, uma outra pode achar natural e até gostar disso. Se a segunda não se sente forçada a seguir um padrão e, pelo contrário, até goste dele, não há problema algum nisso. Somos livres até mesmo para nos submetermos a padrões estéticos [4]. No entanto, a partir do momento que a busca obsessiva pelo corpo ideal afeta o nosso bem-estar e a nossa sanidade mental, precisamos reconsiderar nossa postura.

Vivemos em um tempo que despreza o profundo e glorifica o superficial, que prefere o prazer pueril do momento à plenitude do futuro. Assim, sem prudência e equilíbrio, reduzimos nossa existência a uma passividade displicente, a um viver inócuo. Muitas vezes consumimos pensando no holofote, só para mostrar que temos, para impressionar. Muitas vezes damos nossa opinião sobre um assunto que sequer conhecemos bem só para parecermos inteligentes, mas sem ter tido o esforço que antecede a conquista de uma opinião verdadeira. Muitas vezes sonhamos em ser quem não somos só para que, pelo menos na imaginação, todos gostem de nós [5]; e, nessa mesma linha, cobiçamos o corpo alheio e esquecemos do nosso, o único que temos e que nunca se tornará o cobiçado. A verdade é que nós somos responsáveis por isso. A “sociedade”, o “sistema”, é só um universal abstrato sobre o qual jogamos a culpa dos nossos problemas e dos problemas do mundo. Se o mundo não é um lugar melhor para se viver, é tão somente porque cada um de nós, individualmente, não está tentando ser alguém melhor [6].

Se não estamos satisfeitos com nosso corpo, temos três opções de ação: (1) aceita-lo tal como ele é, (2) tentar melhorá-lo dentro do possível (alimentação, academia etc.) ou (3) deixar-se tomar pelo ressentimento — não aceitar o corpo que tem nem tentar melhorá-lo e, consequentemente, culpar a sociedade por sua opressão pessoal. É tudo uma questão de postura e de mentalidade.

Padrões de beleza existem; cabe a nós lidarmos com eles. Não convém problematiza-los indistintamente porque a escolha de segui-los recai sobre o indivíduo — cada um tem uma relação diferente com esses padrões. Se você odeia os padrões de beleza, sejam os biológicos, sejam os socialmente construídos, se você acha que eles te oprimem, que são filosoficamente uma forma de escravidão, tudo bem, você pode combate-los abertamente, pode deixar de segui-los. Já se você é indiferente, se para você tanto faz, tudo bem também. O cerne do meu argumento é que você pode advogar contra ou a favor dos padrões estéticos, mas nunca num sentido de impor uma interpretação, de proibir determinado comportamento, pois cada um de nós possui o direito natural à liberdade, de escolher livremente como vai viver a própria vida [7].

Notas de rodapé:

[1] Apesar de esses estereótipos não serem relevantes em todas as culturas, isso não significa que não sejam ou não possam ser cobiçados, mas apenas que determinada cultura não possui incidência suficiente desses estereótipos para que eles ganhem relevância.

[2] Esses aspectos são indiferentes porque não apresentam preferência, o ser humano simplesmente nasce com eles.

[3] De baixo para cima significa que a mudança vem de nós e não do governo ou de instituições governamentais. Não são leis que mudarão um comportamento humano tão instintivo.

[4] Submeter-se livremente a algo ou alguém não é necessariamente ruim, como num casamento, por exemplo.

[5] Refiro-me aqui — e teço minhas críticas — somente aos padrões de beleza socialmente construídos, sejam aqueles que exacerbam os biológicos ou que criam tendências estéticas.

[6] Vale ressaltar aqui que, como bem sabido, existem pessoas más no mundo, que sentem prazer em fazer ou propagar o mal. Não estou me referindo a essas pessoas aqui, mas à maioria que está apenas tentando construir sua própria vida.

[7] Impor uma visão é uma coisa, convencer alguém de que sua visão é melhor é outra. No caso desta última, não há nada de errado.

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